segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O Peixe Apodrece Pela Cabeça

Artigo da autoria do historiador José Pacheco Pereira, publicado no jornal PÚBLICO de 12 de Janeiro de 2012

O vírus da intriga e da divisão sempre foi a melhor garantia da intangibilidade do poder

Nós não vivemos no melhor dos mundos. Longe disso, em todos os países europeus, fora dos Balcãs e do Leste, vive-se melhor. Não vivemos também no pior dos mundos. Longe disso, em África, na Ásia, Américas do Centro e Sul e Oceânia, vive-se muito pior. Mas não podemos contentar-nos com este equilíbrio estatístico, porque não são os números absolutos que são relevantes, mas sim os relativos. Não é o que há, é o que está a mudar. O “processo revolucionário em curso” (PREC) ao contrário, que atravessamos, é um processo dinâmico, move-se, desenvolve-se num determinado sentido, alastra pelas suas margens como uma nódoa, destrói todos os dias alguma coisa. E o seu sentido é afastar-nos do melhor dos mundos e aproximar-nos do pior.

A grande incapacidade do Governo, que não é involuntária, mas voluntária, desejada, programática, é ignorar que nestes dias não é tanto a pobreza e a miséria que são características dos tempos que vivemos, mas sim o empobrecimento. O empobrecimento é um factor dinâmico muito mais importante do que a pobreza em termos de efeitos sociais e da perversidade de resultados. É evidente que o principal resultado do empobrecimento é aumentar a pobreza, mas pelo caminho destrói a fibra da sociedade, mergulha-a na apatia e na revolta, dois lados da mesma coisa, corroí-lhe o tónus moral, e faz aumentar todos os sentimentos mesquinhos.

Eu não cuido da moral individual, essa tarefa é para os moralistas e para as religiões, mas preocupa-me a moral colectiva, os sentimentos colectivos, a qualidade moral mínima de Portugal e dos portugueses, minha pátria e minha gente. Contrariamente ao que se diz, não é o “melhor de nós” que vem ao de cima com a crise, mas sim o pior de nós. Estamos a ajudar a criar uma sociedade maldosa, profundamente dividida, oscilando entre rancores e egoísmos, afectada mais do que nunca pelos efeitos desse velho provérbio de pescadores que diz que o peixe apodrece pela cabeça. E esses estragos não se apagam facilmente.

Todo o discurso público do poder é o da divisão e o apelo à luta de classes, grupos, idades, profissões, cada um contra o outro, mesmo quando a condição de cada um é a mesma do outro. Os que tinham toda a razão para fazer greve voltam-se contra os que fazem greve. Os jovens são instigados a voltarem-se contra os velhos, pensionistas e reformados. Os que têm alguns meios de vida desdenham dos que recebem subsídios de desemprego. Os que ainda não viram a sua profissão como alvo apontam a do outro como o alvo que deveria ser o seguinte. Polícias olham para os militares, os militares para os polícias. Trabalhadores do sector privado culpam os funcionários públicos, os funcionários públicos fecham-se com medo do desemprego. Os que ganham 900 euros apontam o dedo aos que ganham 1000 euros. Uma inveja social mesquinha e corrosiva perpassa tudo e todos e cada um defende o seu território, dando razão ao Governo, que aponta toda a contestação como sendo “corporativa”. Só a minha “corporação” é que não é corporativa, todas as outras são-no. O vírus da intriga e da divisão sempre foi a melhor garantia da intangibilidade do poder. E não é difícil em tempos de crise propagar estas epidemias, mas é perigoso. Porém, o medo ajuda, ajuda muito.

Antes dizia-se que o anti-semitismo era o socialismo dos imbecis, agora os nossos governantes apostam numa fractura social que faz de cada uma das partes imbecis sociais, e que, pela sua linguagem, divisões, alvos, egoísmos, servem de rebanho aos pastores deste “PREC”. A única fractura que não desejam é entre os incluídos e os excluídos, os que estão a ganhar com esta crise – poucos, mas a ganhar muito, o suficiente para o preço do Copacabana Palace ser peanuts – e os muitos que estão a perder, porque sabem que ela é socialmente perigosa. Subversiva é o termo certo. Fora disso, venha a luta de classes dos imbecis.

Os maus costumes de uma sociedade em crise, permeável a partir de cima pelos miasmas que dividem e pelo medo, estão a fazer um Portugal pior, muito pior. A mentira tornou-se uma prática quotidiana da governação. Foi-o já em doses exponenciais no Governo socrático, continua no governo passista-relvista. Todos os dias há uma nova tentativa de engano, uma manipulação, uma inquinação do espaço público, uma espertice qualquer vinda de um gabinete ou de uma agência, canhestras muitas vezes, mas sempre destinadas a enganar-nos.

Todo este processo da “refundação do Estado”, desde o anúncio patético e atabalhoado de uma “refundação do memorando” até à encenação da fuga do relatório do FMI, seguida da tentativa de controlo dos danos feita por Moedas, seguida de todos os enganos sobre a sua preparação, versões, papel do Governo, destino e intenções, é o exemplo de como a mentira se tornou a essência do discurso do poder.

Querem, o Governo e a maioria, convencer-nos seriamente de que vão “refundar” o Estado a partir de um anúncio de um corte de 4 mil milhões, escondendo-nos os compromissos já tomados sobre esse valor antes de qualquer discussão, seguido da encomenda de um relatório do FMI conhecido por uma fuga de informação de um comentador, preparado pelo Governo em peso escondido por detrás da instituição internacional, depois de novo passado aos jornais numa “versão preliminar” para preparar a opinião público do susto da definitiva, e depois, a um mês do prazo para a apresentação das propostas do Governo à troika, se apelar ao debate público organizando uma conferência de um dia com convidados escolhidos a dedo entre os próceres do “PREC” e os oposicionistas bem-comportados, juntamente com uma comissão parlamentar de fachada para pressionar o PS, tudo isto sem nunca se saber qual é a proposta do Governo que deveria estar na origem de todo o debate?

Quem colaborar com este processo está a colaborar numa mentira, a ajudar a esconder que tudo já foi acordado, e se alguma das coisas que já foram acordadas com a troika não avançar, é pelo receio dos seus efeitos eleitorais. Como é que nos podemos surpreender por os “de baixo” – os novos inimigos do Governo, restaurantes, cabeleireiros e oficinas de reparação de automóveis – fugirem ao fisco, se os “de cima” fogem à verdade? Tudo o resto é nevoeiro.

A grande falácia deste “PREC” é pensar que a sociedade, a economia e as empresas podem de repente, feito o “ajustamento”, iniciar um arranque glorioso para o crescimento económico e para a melhoria social, quando o que o empobrecimento faz à sociedade é retirar-lhe todo o potencial criativo e força anímica para qualquer reacção que não seja a sobrevivência egoísta e nalguns casos a exploração abusiva da situação em termos próprios. A morte da “classe média”, de que CDS e PSD eram no passado os grandes arautos, é a receita melhor para destruir qualquer dinamismo, retirar à sociedade qualquer potencial de crescimento. Podem fazer mil programas de televisão sobre o “pensamento positivo”, sobre o “Portugal melhor”, premiar em cerimónias televisivas os jovens “empreendedores”, “inovadores”, “inventivos”, que estão apenas a alimentar a ilusão de que qualquer dessas qualidades pode sobreviver numa sociedade que está a ser construída para que eles emigrem se querem ter sucesso, ou vão à falência debaixo do jugo dos impostos e da crise.

Seria, aliás, muito educativo revisitar muitas das iniciativas apresentadas com parangonas televisivas como de “sucesso” e de “futuro” em 2010, 2011, 2012 e ver onde é que elas estão em princípio de 2013. Não estão em lado nenhum porque a sociedade que este “PREC” está a gerar é destrutiva, paroquial, subserviente, sem oportunidades para os bons e cheias de oportunidades para os maus, que as percebem à distância. Parece maniqueísmo? Antes fosse. Mas a responsabilidade é nossa. Edmund Burke escreveu-o: “Tudo o que é necessário para o triunfo do mal é que os homens bons não façam nada”. Sempre podem cortar a cabeça ao peixe, deitar o peixe fora e arranjar outro. É difícil, mas não é impossível.

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