terça-feira, 11 de setembro de 2012

Sobre uma História de Portugal em Fascículos


Uma história em fascículos... (I)
Manuel Loff no jornal PÚBLICO de 2 de Agosto de 2012



O Expresso está a oferecer gratuitamente aos seus leitores uma História de Portugal dividida em nove fascículos, apresentando-a como “um dos livros mais vendidos de sempre” entre os que se dedicaram à nossa história. O Expresso acha (eu não) que este é “hoje reconhecido como um dos melhores livros sobre a História de Portugal”, e terá querido disponibilizá-lo a dezenas de milhares de leitores para quem é apetecível uma síntese em 900 páginas da “história de um grande país”.

O livro é coordenado por Rui Ramos (RR), um historiador especializado na Monarquia Constitucional e na I República portuguesas mas que se encarregou nesta obra de cobrir também o período entre 1926 e a atualidade. As épocas medieval e moderna estiveram a cargo de dois historiadores (Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Monteiro) cujo trabalho não comentarei. Dedicarei esta e a próxima crónicas especificamente ao trabalho de RR, que concebeu e coordenou a obra e disse há dois anos que ela pretendia ser meramente “uma porta de entrada na História”, e “aguçar o apetite do leitor”, descrito como “exigente” (Prólogo, p. II), e “fazer com que as pessoas queiram ir ler mais” (PÚBLICO, 31.5.2010). Esperemos que sim.

RR não é um historiador qualquer; a sua visibilidade pública é ajudada, como em pouquíssimos casos, pelo seu acesso às tertúlias televisivas e à imprensa, onde se tem destacado como uma das penas mais sólidas da direita intelectual portuguesa, que reivindica “o prazer da provocação intelectual e reconhece um aguçado espírito de contradição, sobretudo quando o alvo é a esquerda” (Ler, janeiro 2010). Para percebermos o que RR entende por “provocação”, e em resposta a quem acha — como eu — que o seu trabalho é puro revisionismo historiográfico política e ideologicamente motivado, ele entende que “toda a História é revisionista” e nela “é necessário afirmar originalidade” (PÚBLICO, 31.5.2010).

Centremo-nos hoje na narrativa que RR faz do papel de Salazar na história. Para ele, o Estado Novo era “um regime assente (…) no monopólio da atividade legal por uma organização cívica de apoio ao Governo”, e esta é a forma como ele classificará sempre o partido único da ditadura, com “a chefia pessoal do Estado” entregue a “um professor catedrático introvertido”, um homem “de outra espécie”, com “nada de uma personagem ditatorial” como a dos líderes da Europa fascista do tempo (pp. 627 e 638-39). Neste campo, a primeira das suas preocupações é a mais comum entre os historiadores da área de RR: desenhar um Salazar sensato e algo neurasténico, que não gostaria de uniformes (apesar da origem militar do regime e do seu caráter inevitavelmente policial e repressivo) e que nada teria a ver com Hitler, Mussolini ou Franco. O “pobre homem de Santa Comba”, como o ditador se definiu a si próprio, teria “para Portugal objetivos simples” pois propunha-se “fazer viver Portugal habitualmente” e “queria instituir uma “ditadura da inteligência” para “fazer baixar a febre política” no país e “reencontrar o equilíbrio” (p. 639).

A segunda originalidade de RR decorre daqui e descola totalmente da realidade: oferecer-nos um Salazar liberal, por oposição aos republicanos de 1910 (um dos ódios de estimação de RR), que, praticamente totalitários, teriam estado empenhados em fazerem da sua “revolução” uma “transformação cultural violenta” feita por um “Estado sectário” (pp. 585-86)! Salazar, pelo contrário, queria “assentar o Estado, não na “abstração” de indivíduos desligados da sociedade e arrastados por ideias de transformação radical, mas no que chamou o “sentimento profundo da realidade objetiva da nação portuguesa””. Para RR, “a “missão” do líder” era a de “reconciliar os portugueses com essa “realidade”, e ao mesmo tempo ajudá-los a adotar modos de vida sustentáveis”. Em resumo, “o seu modelo implícito era o que no século XIX se atribuíra aos “ingleses”, prático, “pouco sentimental”: “Eu faço uma política e uma administração bastante à inglesa”” (pp. 639-40) — isto é, um Salazar primeiro-ministro da rainha Vitória... Se acompanharmos as suas crónicas no Expresso, a lição da História para a análise da crise atual parece evidente. Hoje, “a austeridade é, no fundo, a vida depois de desfeitas as últimas ilusões do passado” – exatamente como Salazar, que “tinha ambições, mas não ilusões” (RR, in Sábado, 14.1.2010), se havia empenhado em “reconciliar os portugueses com a realidade” e em “ajudá-los a adotar modos de vida sustentáveis”! E o que é que, na opinião, de RR foi insustentável no nosso passado recente? “Uma classe média de funcionários (…), uma economia de trabalhadores e empresários protegidos, e a estatização de grande parte dos serviços (educação, saúde) e da segurança social” (Expresso, 28.7.2012).

RR leva à prática o que ele próprio estabeleceu como o fim “desta História de Portugal [o de] despertar a atenção para a importância da História como meio de dar profundidade à reflexão e ao debate público sobre o país.” Para ele, “a História (…) é uma maneira de pensar” (Prólogo, p. IV). Tem toda a razão. E a sua está bem à vista.


Uma história em fascículos (II)
Manuel Loff no jornal PÚBLICO de 16 de Agosto de 2012



O Expresso decidiu oferecer gratuitamente aos seus leitores a História de Portugal em 9 fascículos, coordenada por Rui Ramos (RR). Nela, apresenta-se-nos uma ficção sinistra e intelectualmente cínica sobre a ditadura salazarista, procurando aquilo que, até hoje, ninguém na historiografia séria e metodologicamente merecedora do nome tinha tentado: desmontar a natureza ditatorial do Estado Novo. Como comecei a expor aqui há duas semanas atrás, é inaceitável que se pretenda consagrar uma leitura tão manipulada da História.

Para RR, o salazarismo era “uma espécie de uma monarquia constitucional, em que o lugar do rei era ocupado por um Presidente da República eleito por sufrágio direto e individual” (pp. 632-33), que “reconhec[ia] uma pluralidade de corpos sociais (...) com esferas de ação próprias e hierarquias e procedimentos específico”, mas que só “não admitiu o pluralismo partidário” (p. 650). Nada se diz sobre o papel das eleições como simulacro de legitimação popular ou a fraude generalizada, realizada mesmo quando nenhuma candidatura alternativa se atrevia perante a do partido único, para inflacionar artificialmente a votação e simular um consenso que não existia.

É inacreditável ver produtos típicos da fascização da sociedade, importados diretamente do fascismo mussoliniano, como foram os sindicatos nacionais, as casas do povo (verdadeiras “associações de socorro e previdência” que “desenvolviam atividades desportivas e culturais”) e os grémios corporativos, descritos como meras “associações” de “representação da população ativa” (p. 644), sem se escrever uma linha sobre a guerra total aberta aos sindicatos livres do período liberal, feita de prisões, deportações e mortes.

Para RR, a repressão, definidora de qualquer ditadura, “tem de ser colocada no contexto do uso da violência na manutenção da “ordem pública””. Sem citar documentos, Ramos faz aquilo que ele próprio diz que “os salazaristas fizeram sempre questão” de fazer: “Comparar os métodos repressivos [de Salazar] com a ‘ditadura da rua’ do PRP” (p. 652), sustentada sobre o “trabalho sujo” de “gangues chefiados por ‘revolucionários profissionais’” (p. 591), empurrando o leitor a achar que a I República fora muito mais violenta que a ditadura. Esta teria sido tão generosa que muitos “conspiradores e ativistas conservaram as suas posições no Estado em troca de simples abstenção política”; contrariando quase tudo quanto se escreveu na História social e da educação do salazarismo, diz-se que “não houve saneamentos gerais de funcionários” (p. 653)! Pior terá sido a Revolução de 1974-75, em que “20 mil pessoas [se] viram afastadas dos empregos” e “pelo menos 1000 presos políticos” terão sido detidos, “7 vezes mais do que no fim do Estado Novo” (p. 732)...

Espantados? Para RR, o salazarismo, afinal, “não destoava num mundo em que a democracia, o Estado de Direito e a rotação regular de partidos no poder estavam longe de ser a norma na vida política”. A democracia não existia nem na “Europa ocupada [sic] pela União Soviética”, nos “novos Estados da África e da Ásia” ou “mesmo na Europa democrática”, que “produziu monopólios de um partido (...), sistemas de poder pessoal (...), restrições e perversões” como “a proibi[ção] de partidos comunistas” ou “tortura e execuções sumárias” (p. 669). Em 1968, substituído Salazar por Marcelo, “a democratização não estava na ordem do dia” no mundo. Os “constrangimentos policiais”, justificados “no resto do Ocidente” pela “‘luta armada’ da extrema-esquerda” (pp. 697-98) que se inicia no final dos anos 60, eram semelhantes aos do Estado Novo. Eis aquilo que me parece puro cinismo: a democracia, afinal, não existia em lugar nenhum, o que esbate qualquer diferença entre ditaduras e sistemas liberal-democráticos, onde a violência do Estado e de classe coexiste com um mínimo de liberdade de ação para partidos e movimentos que contestem o Estado e os ricos.

Da violência colonial, dos massacres perpetrados contra africanos, nem uma palavra! E a guerra? “A opção [de recusa de sair das colónias] não pareceu inicialmente excêntrica na Europa” porque “a retirada europeia de África só começou em 1960”, omitindo que ela começara dez anos antes. Se a guerra colonial (nunca assim designada, claro) “foi o maior esforço militar de um país ocidental desde 1945” (p. 680), as “guerrilhas” tiveram “reduzido impacto”, a guerra “não foi demasiado cara” e era “pouco mortífera”, e, “talvez por isso, o recrutamento nunca foi um problema” (pp. 684-85), o que é talvez o erro factual mais despudorado de todos quantos RR comete! Em resumo, “a guerra foi aceite” (p. 685) pelos portugueses.

Dedução lógica: o que nos habituámos a chamar uma ditadura não era mais do que um regime semelhante aos que por lá fora havia, melhor até, no campo da repressão, do que muitos, a começar pela I República e o 25 de Abril! Em tempos de transição do Estado Social para o Estado Penal, como designa o sociólogo Loïc Wacquant à criminalização dos dominados que se opera nos nossos dias, o salazarismo voltaria a ser um regime para o nosso tempo!


Um é apenas intelectualmente desonesto; os outros nem sei classificar
José Manuel Fernandes no blog BLASFÉMIAS em 18 de Agosto de 2012



Manuel Loff, um historiador menor que é mais conhecido pela sua adesão ao ideário do Partido Comunista, resolveu insultar nas páginas do Público Rui Ramos a propósito da História de Portugal que este coordenou. O seu esforço canhestro, baseado em mentiras descaradas e em citações tiradas do contexto – por vezes citações de autores que o autor cita e não representam, naturalmente, as suas opiniões –, tem um só objectivo: combater um historiador que não apresenta do Estado Novo o retrato maniqueísta e ideológico que, durante décadas, o PCP e os intelectuais afiliados foram construindo do salazarismo. Esse retrato, baseado na identificação plena do autoritarismo salazarista com o fascismo italiano e com o nazismo alemão, há muito que está desacreditado entre os historiadores sérios, sejam eles mais à esquerda ou mais à direita. Manuel Loff é que, infelizmente, não é um historiador sério. Basta recordar que titulou um dos seus livros com uma frase que atribui a Salazar – “O nosso século é fascista”, assim, entre aspas – que Salazar nunca pronunciou. É antes um ideólogo que, por exemplo, acha que aquilo a que alguns chamam a ordem “demo-capitalista” – as nossas democracias – se assemelha à (velha) “Nova Ordem” nazi-fascista, como defende no último capítulo desse mesmo livro. Por tudo isto, e porque entre os historiadores ninguém lhe dá real crédito, os seus textos deviam ser ignorados como simples infâmias mal-intencionadas, obras de alguém intelectualmente desonesto que sustenta a sua tese em factos que qualquer leitor desta História de Portugal sabe serem falsos (por exemplo: Loff dá a entender que Ramos ignora ou desvaloriza o aparelho repressivo do Estado Novo, quando há várias páginas dedicadas à censura, à PIDE ou aos métodos de tortura; Loff também chega ao ponto da difamação ao dizer que Ramos não classifica como ditadura o regime salazarista, quando isso é feito de forma muito clara).

Não por acaso, essa História de Portugal foi muito elogiada, mesmo por pessoas que não são suspeitas de terem as mesmas inclinações políticas de Rui Ramos. José Mattoso, por exemplo, escreveu em 2010 no mesmo Público que “a obra de Rui Ramos fornece dados para uma resposta clara, fundamentada, muito completa, bem escrita, de boas dimensões para ser lida do princípio ao fim. O cuidado na datação e na geografia dos acontecimentos, na identificação social dos protagonistas, na objectividade possível das informações e na selecção e concatenação dos factos mais importantes deixa para trás qualquer obra congénere anteriormente publicada”.Mais: “foi possível aos três autores ultrapassar a dicotomia que, desde o tempo de Herculano, opunha a história patriótica e apologética do poder à história liberal e republicana que pretendia desmascarar os responsáveis pelos obstáculos ao progresso e a decadência nacional”. Assim, parecia a José Mattoso “muito salutar ter reduzido tais polémicas a um juízo isento de preconceitos ideológicos. O carácter irreverente de Rui Ramos vem, por vezes, à tona em alguns dos seus comentários, o que talvez lhe traga a má vontade de alguns leitores. Creio, porém, que não será fácil contestar a vastidão das suas informações e a pertinência das suas interpretações”.

Claro que não preciso de comparar a autoridade – pessoal, académica, tudo o que quiserem – de José Mattoso com a de Manuel Loff, pelo que recordar um pouco este texto fala por si. Com eloquência.

Mas se já era mau termos um Loff, é muito pior termos galinhas a cacarejar o que Loff diz sem sequer se darem ao trabalho de pensar. Pessoas que, espante-se, sentenciam o livro de Ramos ao mesmo tempo que admitem não o ter lido. Refiro-me a alguém que se intitula como jornalista, Pedro Rolo Duarte, que pretende fazer graça com este livro apesar de começar o seu texto a dizer que não o leu. E refiro-me também a um dos “politólogos” mais requestado pelas televisões, André Freire, que utilizou o Facebook para também confessar a sua ignorância sobre o livro e, logo a seguir, apoiar as teses de Loff. Nem sei que pensar. Talvez estes dois opinadores tenham achado que era melhor opinarem já em vez de serem desmentidos se lessem o livro. Talvez tenham tido medo de serem intelectualmente desonestos se lessem o livro e, depois, o acusar de ser o que não é. Assim preferiram ser apenas desonestos e botarem faladura sobre o que não conhecem.

É o país que temos, que mais se pode dizer.


O compilador
Helena Matos no blog BLASFÉMIAS em 18 de Agosto de 2012



A propósito da má fé de Loff em relação a Rui Ramos e da sua fúria por a História coordenada por Rui Ramos estar a ser distribuída com o EXPRESSO creio que melhor explicação para este tipo de fenómenos é a que foi dada por Eça na resposta a Pinheiro Chagas. Chagas indignara-se com o facto de Eça usar a História de Portugal, de Oliveira Martins, e não a dele Pinheiro Chagas. Ao que Eça concluiu fazendo um retrato de Chagas que cabe que nem uma luva em Loff: «Eu compreendo o furor dum historiador que tem História com tabuleta e porta para a rua, ao ver o freguês ir alegremente fornecer-se de ciência à História do vizinho e do rival: são momentos esses que bastam para depor numa alma de compilador ou de lojista insondáveis camadas de fel.» Como as ideias de Loff não triunfaram neste país a edição é livre. Logo Loff tem bom remédio: pode começar a fazer uma outra História de Portugal.


Contraditório
Rui Ramos



Publicou o jornal PÚBLICO, nos números de 2 e 16 de Agosto, dois artigos de um seu colunista quinzenal a acusar-me de ter dito, na História de Portugal de que sou autor com Bernardo de Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro, que a ditadura de Salazar não era uma ditadura, mas um regime democrático e pluralista, e que a melhor solução política para o Portugal de hoje é uma ditadura fascista como a de Salazar (há obviamente uma contradição nestas duas acusações, que parece ter escapado ao autor delas). Para "provar" tais calúnias, são-me atribuídos argumentos que nunca defendi e deturpado o sentido de frases e de pedaços de texto, grosseiramente mutilados e manipulados. Darei alguns exemplos. É dito ter eu afirmado que Salazar não era uma "personagem ditatorial", no sentido em que não era um ditador e o seu regime não era uma ditadura. Nunca, como é óbvio, disse isso: o que eu digo, a p. 639, é que Henri Massis, ao visitar Salazar em 1938, notou que "nada tinha de uma personagem ditatorial" (a expressão não é minha, mas de Massis), no sentido em que projectava uma presença muito diferente do ditador típico da época, como Mussolini, o que não quer dizer que Salazar não fosse um ditador (como até Massis o considera, aliás). De resto, chamo por todo o lado ao Estado Novo uma "ditadura". É dito que eu considero o Estado Novo um regime absolutamente idêntico à monarquia constitucional do século XIX. Nunca, como é óbvio, disse isso: o que eu digo, a p. 632, na linha de vários historiadores e juristas de diversos quadrantes ideológicos, é que o Presidente da República - só isso - faz lembrar, na constituição formal do Estado Novo (muito diferente da efectiva), o rei da monarquia constitucional, o que não é a mesma coisa que dizer que a ditadura salazarista é igual ao regime liberal do século XIX. É dito que eu considero o Estado Novo um regime que não se distingue das democracias ocidentais do pós-guerra, quando o que eu digo, a pp. 667-670, é que a Guerra Fria levou as democracias ocidentais a tolerar e a enquadrar ditaduras como a de Salazar, cujas semelhanças com a Itália fascista noto a p. 638 (cito-me: "Em 1940, o Estado Novo lembrava em muitos aspectos o Estado fascista italiano"). É dito que eu faço a história da ditadura de Salazar sem jamais mencionar a censura, a PIDE, a tortura, etc. - quando, a páginas 654 e 694, descrevo o funcionamento da censura; a pp. 650 e 695, os recursos e os métodos de actuação da PIDE; a p. 651, cito o número de presos políticos, o número de mortes no campo de concentração do Tarrafal e o uso generalizado de torturas como a "estátua"; a p. 695, atribuo o assassinato do general Delgado à PIDE; a p. 673, refiro o sistema de penas de prisão renovadas por decisão do Governo ("a confirmação de que o arbítrio pessoal dos governantes substituíra qualquer procedimento judicial") e as exclusões políticas no emprego; a p. 652, cito uma carta impressionante de José Marinho, de 1937, que bem revela o peso opressivo da ditadura salazarista sobre o quotidiano. É dito ainda que escondo a violência colonial, quando a verdade é que afirmo que, sob a ditadura de Salazar, tal como sob regimes anteriores, as populações das colónias estavam "à mercê da administração" (p. 659), prosseguindo uma análise de pp. 563-565, em que enfatizo a dimensão violenta da colonização em África. Podia continuar. Não me parece que valha a pena. O resto é deste mesmo quilate. Recorrendo a tais métodos, e com a desfaçatez com que são usados neste caso, seria possível "provar" que qualquer pessoa é "fascista". Permito-me convidar os leitores do PÚBLICO, sejam quais forem as suas convicções, a ler os capítulos sobre o Estado Novo na História de Portugal, quer na edição de livraria da Esfera dos Livros, quer na edição que está a ser distribuída gratuitamente pelo semanário Expresso. Não é uma obra perfeita. Terá limitações e defeitos. Mas estou certo de que nenhum leitor de boa fé, por mais que discorde das minhas interpretações, poderá dizer que derivam de "ideias fascistas". Há sete anos que escrevo semanalmente na imprensa e participo regularmente em programas de televisão. Os leitores do PÚBLICO puderam ler-me durante três anos, todas as semanas, entre 2006 e 2009. As minhas orientações e pontos de vista não são segredo. Toda a gente que me leu ou ouviu sabe que não tenho qualquer simpatia por ditaduras, sejam de direita, de esquerda ou do centro. Em tudo o que disse e escrevi sobre a ditadura salazarista, em publicações académicas ou na grande imprensa, em aulas ou em palestras, nunca deixei a mais ligeira dúvida sobre a natureza opressora e asfixiante do regime. Não por facciosismo, mas porque o regime era mesmo assim. Podia citar aqui o primeiro estudo académico que publiquei sobre o salazarismo, em 1986, na revista Análise Social, n.º 90, pp. 109-135 (disponível online). Mais eis, por exemplo, excertos do que escrevi no Expresso, suplemento Actual, 24 de Julho de 2010, pp. 8-13: "Quando comparamos a ditadura salazarista com as suas contemporâneas, quer na década de 1930, quer na década de 1960, a contabilidade repressiva é modesta. (...) Mas não nos devemos enganar. A ditadura de que Salazar esteve à frente desde 1932, quando assumiu a chefia do Governo, foi mesmo uma ditadura, com censura, tortura nas prisões, penas indefinidas e discriminações políticas. Pareceu "moderada", porque, como explicou Manuel de Lucena, era meticulosamente "preventiva". Todos em Portugal estavam à mercê do poder, sem real protecção jurídica. (...) Nunca houve dúvidas de que (a ditadura) podia ser implacável. Deixou morrer três dezenas de anarquistas e comunistas no campo do Tarrafal, em Cabo Verde, entre 1936 e 1945. Perseguiu e exilou o bispo do Porto, encobriu ou não investigou o assassinato do general Humberto Delgado por agentes da PIDE em 1965"... Como é possível alguém que leu isto dizer que eu "nego" a ditadura? De facto, as acusações que me foram feitas são tão absurdas que não deveriam merecer resposta. Esta não é uma polémica historiográfica ou uma questão de opiniões. É um simples caso de difamação pessoal. Mas, publicadas num jornal como o PÚBLICO, tais calúnias e falsidades poderão ter deixado perplexos alguns leitores que ainda não conhecem o livro. Para esses, e só para eles, escrevi estas notas. Para os que leram o livro de boa fé, mesmo sem concordar, não creio que sejam necessárias.


Difamação (III)
Manuel Loff no jornal PÚBLICO de 30 de Agosto de 2012


 

O debate de ideias não é fácil. E menos ainda quando se o procura evitar arrastando-o para um terreno que se pretende descrever como moral, quase judicial. Rui Ramos (RR), coordenador da História de Portugal que o Expresso decidiu oferecer aos seus leitores e que eu critiquei, na parte que lhe cabe, nas minhas duas últimas crónicas no PÚBLICO (2 e 16 de agosto), queixava-se há dois anos de que “vivemos num mundo muito diferente do que eu vivi em Inglaterra ou em Espanha, onde nos mesmos seminários, congressos e departamentos convivem pessoas com ideias muito diferentes, discutindo acalorada ou friamente, mas debatendo ou divergindo” (PÚBLICO, 31.5.2010). Ramos reagira assim quando, no PÚBLICO, São José Almeida o confrontou com as opiniões de vários historiadores (F. Rosas, A. Costa Pinto, M. de Lucena, I. Pimentel, eu próprio, com quem ele, mal ou bem, tem convivido em congressos, júris, comités), entre as quais se formularam críticas mais duras do que aquelas que eu agora dirigi ao seu trabalho.

O debate em torno do livro em questão não é novo e não surgiu do nada. A RR não se lhe ocorreu então de falar de “um simples caso de difamação pessoal”, de “desfaçatez”, de “calúnias” e “falsidades” — tudo epítetos com que me brinda hoje, evitando tratar-me pelo nome e chamando-me “um colunista quinzenal” do PÚBLICO, negando tratar-se de “uma polémica historiográfica ou [de] uma questão de opiniões”. Pela minha parte, habituado a que estou a que se use a tática da vitimização para desviar o debate, não alimentarei semelhante estratégia respondendo a tais epítetos — mas confesso achar que será fácil ao leitor perceber, como quase sempre acontece nestas situações, como todos eles poderiam recair sobre o seu autor…

É, no mínimo, excêntrico que RR gaste uma página inteira deste jornal para responder a “acusações” — a expressão é usada três vezes — “tão absurdas que não deveriam merecer resposta”. E, contudo, quem, como ele diz de si próprio, “há 7 anos que escrev[e] na imprensa semanalmente e particip[a] em programas de TV”, deve saber submeter-se à mesma crítica pública a que sujeita, como ele tem sujeitado, os outros. Sobretudo se publica resultados da sua investigação sob a forma de livro: nessas vestes, sabe que está sujeito ao contraditório e ao debate, regra intrínseca à produção de conhecimento que se pretende científico. E esse debate, mesmo que desenvolvido num jornal e não numa revista especializada, faz-se sempre com um mínimo de regras metodológicas simples, que passam por citar rigorosamente o que se pretende contradizer/discutir — o que fiz com tudo quanto de RR citei, ao contrário do procedimento (esse, sim, manipulador) que ele seguiu para se referir às minhas críticas, evitando fazer citações diretas e permitindo-se, assim, atribuir-me o que não escrevi. Ramos caricatura os meus argumentos e quer responder à caricatura. Se tal fosse admissível seria fácil, mas as minhas crónicas não foram escritas no Inimigo Público…

RR inventa até que eu lhe teria chamado fascista por escrever o que escreveu — adjetivo (com aspas, como se de uma citação minha se tratasse!) que usa três vezes na sua resposta. Imagino que queira arrastar-me para alguma alucinação sua de 1975, mas não o sigo. RR não precisa de ser fascista para ser um empenhado relativizador da leitura histórica da ditadura salazarista, que procura há anos desmontar a natureza ditatorial do Estado Novo para a tornar banal, comum, no contexto histórico em que ela se desenvolveu, usando argumentos que se conhecem há muito na Alemanha, em Itália, em Espanha, em França, entre outros, para relativizar experiências ditatoriais sobre cuja condenação se baseiam as democracias contemporâneas europeias, procurando branquear a imagem das ditaduras, quer reduzindo o seu peso histórico específico, quer contaminando todas as outras experiências políticas contemporâneas com a mesma suspeição moral. Há 15 anos que estudo este fenómeno; nada do que Ramos escreve me parece novo.

Sabendo bem como é inútil e desinteressante tornar estas discussões num o-que-eu-disse-mas-não-disse, é-me imprescindível insistir em que não escrevi que RR teria defendido “que a ditadura de Salazar não era uma ditadura, mas um regime democrático e pluralista”, como ele me atribui. O que disse, e reitero, e documentei devidamente, é que procurou desmontar a natureza ditatorial do Estado Novo, relativizando algumas das suas caraterísticas essenciais enquanto tal: (i) tomando a sua retórica propagandística como realidade; (ii) comparando-o com o liberalismo inglês do séc. XIX (p. 640) e com “uma espécie de uma monarquia constitucional” (p. 632), metáfora que, ao contrário do que RR escreveu há dias atrás, não tem curso legal entre “historiadores e juristas de diversos quadrantes ideológicos”; (iii) pressupondo haver uma “persistência do pluralismo” relativamente ao sistema liberal (p. 650); (iv) travestindo partido único, sindicatos nacionais, grémios corporativos, casas do povo, de “associações” “cívicas”, de “representação da população ativa”, “de socorro e previdência”, “desportivas e culturais” (pp. 627 e 644).

Dois casos terão irritado mais diretamente RR: a sua avaliação da repressão salazarista e aquilo que eu entendo ser uma visão intelectualmente cínica de um salazarismo que, afinal, “não destoava num mundo em que a democracia, o Estado de Direito e a rotação regular de partidos no poder estavam longe de ser a norma na vida política” (p. 669). As duas questões convergem para uma mesma visão, para a qual ele pretende conduzir o leitor: o salazarismo foi um regime claramente menos repressivo que a I República e o período revolucionário de 1974-75 (cf. pp. 652 e 732), e menos até que “regimes democráticos contemporâneos na Europa [que] apresentaram contabilidades repressivas análogas ou piores” (p. 652). Se aceitássemos como legítimas semelhantes leituras manipuladas da História, muitos achariam que o salazarismo, como aqui escrevi, poderia voltar a ser um regime para o nosso tempo.

Em contraste radical com a avaliação que faz do salazarismo, RR tem proposto um retrato especialmente retorcido do republicanismo e da I República portuguesa. É daquelas coisas que não há ninguém na historiografia portuguesa que não saiba. Sendo relativamente consensual discutir a democraticidade efetiva do sistema político republicano, sobretudo pela ausência de sufrágio universal, RR tem proposto comparações e interpretações que se qualificam a si próprias. Ele foi, por exemplo, capaz de encontrar semelhanças entre o republicanismo português e… o nazismo e a preparação do Holocausto. Não só ambos estiveram “umbilicalmente ligados a organizações esotéricas, de que retiraram símbolos e parte da retórica”, como, sobretudo, “o ódio [republicano] aos jesuítas constituiu uma espécie de antisemitismo da República. Aliás, algumas das medidas que Miguel Bombarda sugeriu contra os padres jesuítas (expulsão para uma ilha deserta, etc.) são semelhantes ao que os nazis alemães, alguns anos depois, pensaram fazer aos judeus, antes de se decidirem a exterminá-los” ( A Segunda Fundação, 1890-1926, 1994, pp. 413 e 411). Para ele, “a República de 1910 (…) era um Estado confessional e de partido único” — exatamente aquilo que nega sobre o salazarismo, contrariando a maioria da historiografia —, tomado pela “ideia do ‘despotismo da liberdade’” que Ramos acha ser caraterística da “esquerda [que] dispôs sempre dos meios teóricos necessários para chamar “democracia” à imposição de uma vontade minoritária”. “Depois de 1926, a restauração das “liberdades públicas” fez parte das reivindicações do reviralho” oposicionista de 1926-31, “mas essa piedosa e modesta reivindicação foi sempre a canção do bandido [!!] de quem estava na oposição.” [ Análise Social, vol. XXXIV (153), 2000, pp. 1062, 1064]. Uns equivalem-se aos outros, está visto…

Não creio ser necessário acrescentar mais nada.

P.S.: Parece haver um turbilhão de reações nos blogues da direita intelectual a estas duas crónicas minhas. Alguma coisa deve ter a ver com agosto e a silly season. A mais excêntrica e ofensiva de todas é a de António Araújo no PÚBLICO, um homem de que me habituei a citar um livro sobre a constitucionalização do salazarismo, que veio agora desenterrar uma crónica minha num jornal online já desaparecido de há… 6,5 anos atrás!, sobre os novos assessores da Presidência da República (ele incluído), e que ele não contrariou então. É incompreensível que, todos estes anos depois, Araújo pretenda que isto tenha a ver com a discussão do “modo de escrever a nossa História contemporânea”, muito menos com o livro de RR. Confundindo uma série de opiniões que eu, efetivamente, não lhe atribuí, é inaceitável a colagem que faz à minha discussão com RR, e menos ainda o tom de desafio e de banco dos réus (“delito”, “caluniar e difamar”, “vilipendiar”…) que assume. Assim não há debate possível.


... quando o assunto chega a Filomena Mónica
Victor Dias no seu blog O TEMPO DAS CEREJAS, em 1 de Setembro de 2012



Ao coro direitista e anexos que se tem juntado em defesa de Rui Ramos contra as justas observações de Manuel Loff, chegou hoje a vez, através de artigo no Público da historiadora (e fala-barato) Maria Filoménica Mónica. Como era de prever, aos quesitos essenciais em debate , a senhora nada tem para dizer de novo, mas diz algo de muito grave e que não pode passar em claro. Afirma, por exemplo. que «dada a sua reputação, espanta-me que a direcção do Público tenha dado voz a alguém como Manuel Loff, que assina-se, note-se, como historiador. Melhor seria ter usado a palavra militante, pois os textos que aqui publicou, revelam uma fanatismo que eu julgava ultrapassado na disciplina».

Neste ponto, obviamente que Maria Filomena Mónica se esquece que Rui Ramos também assina como historiador e nem por isso deixa de espalhar por diversos meios de comunicação as suas opiniões sobre os mais diversos assuntos e que ela própria, apresentada como socióloga ou como historiadora, nem por isso deixou de opinar no DN sobre o relevantíssimo tema dos penteados de Passos Coelho e de Vítor Gaspar.

Acrescenta Filomena Mónica que «nunca ouvira falar de Manuel Loff e teria vivido bem sem com ele me ter cruzado nas páginas deste jornal. Suponho que a direcção do jornal não o chama à pedra devido ao medo de ser acusada de censura». Pena, para a matéria em apreço que Mónica não tenha lido o essencial ensaio de Manuel Loff intitulado «O Nosso Século é Fascista - o Mundo Visto por Salazar e Franco (1936-1945)».

E Filomena Mónica ainda conclui a sua crónica sentenciando que «só tenho pena que o meu jornal tivesse sido o veículo através do qual um «historiador» tenha podido mentir com impunidade», o que constitui um indisfarçável apelo ao saneamento de Manuel Loff como colunista do Público.
Ora, a este respeito, convém lembrar que, uma vez em entrevista José Manuel Fernandes anunciou com todas as letras que o jornal previligiava as opiniões de pessoas do «bloco central», que salvo outras colaborações esporádicas, Manuel Loff é o único colunista de esquerda e quinzenal ( Paulo Rangel, Correia de Campos e Pacheco Pereira são semanais) e que, em pouco mais de 20 anos de existência, o Público só teve dois colunistas semanais comunistas - o Luís Sá e eu eu pro?rio, cerca de um ano cada um.

Mas, para a douta Maria Filomena Mónica, estará tudo bem assim e não poderia ser de outra maneira, como diria o ditador de Santa Comba.


A História de Portugal, Rui Ramos e Manuel Loff
Carta de António Barreto à direcção do jornal PÚBLICO


Por várias vezes, no decurso das últimas semanas, fui surpreendido por escritos alusivos à História de Portugal da autoria de Rui Ramos (coordenador), Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro, publicada em 2009. A maior parte desses textos apareceram no PÚBLICO e o seu principal autor é Manuel Loff. Sei bem que a liberdade de expressão não pode ser limitada de ânimo leve, nem sequer pela qualidade. Mas é sempre triste ver que a inteligência, o rigor e a decência têm por vezes de ceder perante essa liberdade última que é a de publicar o que se pensa.

Quando tive a honra de apresentar o livro, na Sociedade de Geografia, anunciei o que para mim era um momento histórico. Com efeito, esta História de Portugal quebrava finalmente o duopólio fanático estabelecido há muito entre as Histórias ditas "da esquerda" e da "direita".

As várias formas de "nacionalismo" e de "marxismo" e respectivas variantes tinham dominado a disciplina durante décadas. Apesar de algumas contribuições magistrais (e a de José Mattoso é das principais), ainda não se tinha escrito uma História global, compacta e homogénea que rompesse com a alternativa dogmática, que viesse até aos nossos dias e que, especialmente para o século XX, "normalizasse" a interpretação da 1.ª República e do Estado Novo. Ambos estavam, mais do que qualquer outro período, submetidos à tenaz de ferro das crenças religiosas e ideológicas e ao ferrete das tribos.

Com esta História, estamos longe daquela tradição que cultiva e identifica inimigos na História. Agora, deixa de haver intrusos e parêntesis. Os regimes políticos modernos e contemporâneos, de Pombal à Democracia, passando pelos Liberais, pelos Miguelistas, pela República e pelo Salazarismo, eram finalmente tratados com igual serenidade académica, sem ajustes de contas.

Um dos feitos desta História consiste na "normalização" do século XX, marcado por rupturas e exibindo feridas profundas. Por isso me curvava diante dos seus autores, homenageando a obra que ajuda os portugueses a libertarem-se de fantasmas. Mas, sinceramente, já não esperava que ainda houvesse demónios capazes de despertar o pior da cultura portuguesa.


Viva o M.N.S.R.R. !
Artigo de Victor Dias no seu blog O TEMPO DAS CEREJAS em 3 de Setembro de 2012



Continua a desenvolver-se dia após dia o impressionante Movimento Nacional de Solidariedade com Rui Ramos (MNSRR). Entre outros exemplos em que não terei reparado ou de que não falei, já tivemos no Público um P.S. de José Manuel Fernandes, hoje temos outro P.S. desta vez do sempre magnífico J. C. Espada e, coisa mais articulada, no mesmo jornal, temos uma carta do incontornável António Barreto.

Sobre o teor dessa carta, só quero registar duas coisas:

- a primeira é que Barreto comete o infame truque de fazer de conta que é toda a História de Portugal coordenada por Rui Ramos que tem estado a ser criticada quando sabe perfeitamente, até pela sua referência exclusiva a Manuel Loff que, até agora, o que tem estado em polémica é, no essencial, a análise feita sobre o período da, para mim, ditadura fascista, o que não quiser dizer que não possa haver outras épocas ou períodos tratados nessa obra que causem divergênccias ou polémicas;

- a segunda é que, reveladora e significativamente, António Barreto termina afirmando que (sublinhado meu) «um dos feitos desta História consiste na «normalização» do século XX, marcado por rupturas e exibindo feridas profundas. Por isso me curvava diante dos seus autores, homenageando a obra que ajuda os portugueses a libertarem-se dos seus fantasmas». É claro que do actual António Barreto tinha de sair um parágrafo assim, não tendo sido por acaso que, há cinco anos, eu escrevi sobre «a evidência de que, em relação a um vasto conjunto de acontecimentos e problemas da história contemporânea, está em curso um atrevido processo de revisão e rasura, muitas vezes convenientemente mascarado com poses de “distanciamento”, “pacificação”, “bom senso”, “relativismo político”, “neutralidade” e “isenção”.

E termino sublinhando apenas que triste sinal dos tempos é este em que uma data de personalidades quer transformar Rui Ramos no Grande Sacerdote da História de Portugal e em que toda a crítica, divergência e polémica cometem o horroroso delito de estragarem a pintura da tal «normalização».

Vou propor que o Pingo Doce passe a vender também uns pacotes de cultura democrática.


Ramos e Miguel
Artigo de João Pinto e Castro no blog JUGULAR em 3 de Setembro de 2012



Agora que quase toda a gente já sabe o que Rui Ramos pensa de Salazar, convido-vos a tomarem conhecimento do que ele achou apropriado escrever sobre D. Miguel:

«Os liberais tentaram sempre associar a contra-revolução ao clero, aos fidalgos e à "plebe", de modo a reduzi-la a uma simples "reacção" de interesses ofendidos e da massa ignorante do país. Não por acaso, insistiram em caricaturar D. Carlota Joaquina e D. Miguel como seres grosseiros e violentos, vivendo entre criados e a "ralé" - a contra-imagem, portanto, do tipo ideal da "classe média", ilustrado e sociável. Mas a contra-revolução não foi um simples negócio de instintos primitivos. (História de Portugal, p. 475)»

Este tom compreensivo para com o tão caluniado terrorismo miguelista - "o miguelismo nunca esteve suficientemente consolidado para ser tolerante" (p. 485), justifica Ramos - perpassa por todas as páginas que dedica ao violento conflito que, na primeira metade do século XIX, opôs em Portugal absolutistas a liberais. Como vêem, este historiador que nunca se ri tem sempre uma palavra amável para os maiores facínoras da nossa história.


Texto de Mário de Carvalho, divulgado no Facebook, em 4 de Setembro de 2012


«Eu nunca fui obrigado a fazer a saudação fascista aos «meus superiores». Eu nunca andei fardado com um uniforme verde e amarelo de S de Salazar à cintura. Eu nunca marchei, em ordem unida, aos sábados, com outros miúdos, no meio de cânticos e brados militares. Eu nunca vi os colegas mais velhos serem levados para a «mílícia», para fazerem manejo de arma com a Mauser. Eu nunca fui arregimentado, dias e dias, para gigantescos festivais de ginástica no Estádio do Jamor. Eu nunca assisti ao histerismo generalizado em torno do «Senhor Presidente do Conselho», nem ao servilismo sabujo para com o «venerando Chefe do Estado». Eu nunca fui sujeito ao culto do «Chefe», «chefe de turma», «chefe de quina», «chefe dos contínuos», «chefe da esquadra», «chefe do Estado». Eu nunca fui obrigado a ouvir discursos sobre «Deus, Pátria e Família». Eu nunca ouvi gritar: «quem manda? Salazar, Salazar, Salazar». Eu nunca tive manuais escolares que ironizassem com «os pretos» e com «as raças inferiores». Eu nunca me apercebi do «dia da Raça». Eu nunca ouvi louvar a acção dos «Viriatos» na Guerra de Espanha. Eu nunca fui obrigado a ler textos escolares que convidassem à resignação, à pobreza e ao conformismo; Eu nunca fui pressionado para me converter ao catolicismo e me «baptizar». Eu nunca fui em grupos levar géneros a pobres, politicamente seleccionados, porque era mesmo assim. Eu nunca assisti á miséria fétida dos hospitais dos indigentes. Eu nunca vi os meus pais inquietados e em susto. Eu nunca tive que esconder livros e papéis em casa de vizinhos ou amigos. Eu nunca assisti à apreensão dos livros do meu pai. Eu nunca soube de uma cadeia escura chamada o Aljube em que os presos eram sepultados vivos em «curros». Eu nunca convivi com alguém que tivesse penado no Tarrafal. Eu nunca soube de gente pobre espancada, vilipendiada e perseguida e nunca vi gente simples do campo a ser humilhada e insultada. Eu nunca vi o meu pai preso e nunca fui impedido de o visitar durante dias a fio enquanto ele estava «no sono». Eu nunca fui interpelado e ameaçado por guardas quando olhava, de fora, para as grades da cadeia. Eu nunca fui capturado no castelo de S. Jorge por um legionário, por estar a falar inglês sem ser «intréprete oficial». Eu nunca fui conduzido à força a uma cave, no mesmo castelo, em que havia fardas verdes e cães pastores alemães. Eu nunca vi homens e mulheres a sofrer na cadeia da vila por não quererem trabalhar de sol a sol. Eu nunca soube de alentejanos presos, às ranchadas, por se encontrarem a cantar na rua. Eu nunca assisti a umas eleições falsificadas, nunca vi uma manifestação espontânea ser reprimida por cavalaria à sabrada; eu nunca senti os tiros a chicotearem pelas paredes de Lisboa, em Alfama, durante o Primeiro de Maio. Eu nunca assisti a um comício interrompido, um colóquio desconvocado, uma sessão de cinema proibida. Eu nunca presenciei a invasão dum cineclube de jovens com roubo de ficheiros, gente ameaçada, cartazes arrancados. Eu nunca soube do assalto à Sociedade Portuguesa de Escritores, da prisão dos seus dirigentes. Eu nunca soube da lei do silêncio e da damnatio memoriae que impendia sobre os mais prestigiados intelectuais do meu país. Eu nunca fui confrontado quotidianamente com propaganda do estado corporativo e nunca tive de sofrer as campanhas de mentalização de locutores, escribas e comentadores da Rádio e da Televisão. Eu nunca me dei conta de que houvesse censura à imprensa e livros proibidos. Eu nunca ouvi dizer que tinha havido gente assassinada nas ruas, nos caminhos e nas cadeias. Eu nunca baixei a voz num café, para falar com o companheiro do lado. Eu nunca tive de me preocupar com aquele homem encostado ali à esquina. Eu nunca sofri nenhuma carga policial por reclamar «autonomia» universitária. Eu nunca vi amigos e colegas de cabeça aberta pelas coronhas policiais. Eu nunca fui levado pela polícia, num autocarro, para o Governo Civil de Lisboa por indicação de um reitor celerado. Eu nunca vi o meu pai ser julgado por um tribunal de três juízes carrascos por fazer parte do «organismo das cooperativas», do PCP, com alguns comerciantes da Baixa, contabilistas, vendedores e outros tenebrosos subversivos. Eu nunca fui sistematicamente seguido por brigadas que utilizavam um certo Volkswagen verde. Eu nunca tive o meu telefone vigiado. Eu nunca fui impedido de ler o que me apetecia, falar quando me ocorria, ver os filmes e as peças de teatro que queria. Eu nunca fui proibido de viajar para o estrangeiro. Eu nunca fui expressamente bloqueado em concursos de acesso à função pública. Eu nunca vi a minha vida devassada, nem a minha correspondência apreendida. Eu nunca fui precedido pela informação de que não «oferecia garantias de colaborar na realização dos fins superiores do Estado». Eu nunca fui objecto de comunicações «a bem da nação». Eu nunca fui preso. Eu nunca tive o serviço militar ilegalmente interrompido por uma polícia civil. Eu nunca fui julgado e condenado a dois anos de cadeia por actividades que seriam perfeitamente quotidianas e normais noutro país qualquer; Eu nunca estive onze dias e onze noites, alternados, impedido de dormir, e a ser quotidianamente insultado e ameaçado. Eu nunca tive alucinações, nunca tombei de cansaço. Eu nunca conheci as prisões de Caxias e de Peniche. Eu nunca me dei conta, aí, de alguém que tivesse sido perseguido, espancado e privado do sono. Eu nunca estive destinado à Companhia Disciplinar de Penamacor. Eu nunca tive de fugir clandestinamente do país. Eu nunca vivi num regime de partido único. Eu nunca tive a infelicidade de conhecer o fascismo.»


Cartilha "normalizada" do Estado Novo?
Artigo de Fernando Rosas publicado no jornal PÚBLICO em 5 de Setembro de 2012


Não era minha intenção intervir na polémica que neste jornal tem oposto os historiadores Rui Ramos (RR) e Manuel Loff (ML), a propósito dos conteúdos sobre a História do século XX da de que o primeiro é, respectivamente, autor e co-autor. E não o faria, se o inacreditável artigo de Filomena Mónica (FM) publicado nestas colunas (1/8) a tal me não tivesse obrigado.

Permitam-me que comece por situar a questão, tal como a vejo: é ou não científica e civicamente relevante discutir criticamente os pontos de vista que enformam a versão da História política do século XX subscrita por RR? Eu acho que sim. Porque é um texto bem escrito, porque teve ampla divulgação e, sobretudo, porque é matéria que se prende umbilicalmente com a forma como pretendemos legitimar o presente e fazer o futuro. No meu entender, foi precisamente isso que, à sua maneira e no seu estilo assertivo, mas onde não vislumbro nada de insultuoso ou pessoalmente difamatório para o criticado, julgo que Manuel Loff pretendeu fazer. Na realidade, essa parte da História de Portugal de RR, no seu modo corrente e aparentemente desproblematizador, no seu jeito de discurso do senso comum superficial e para o “grande público”, é um texto empapado de ideologia. Uma ideologia que faz passar a visão da I República como um regime ditatorial, “revolucionário” e de “terror”, por contraponto a um Estado Novo ordeiro e desdramatizado, quase banalizado na sua natureza política e social, transfigurado em ditadura catedrática, em regime conservador moderado e aceitável, apesar de um ou outro abuso. Essa visão — em vários aspectos semelhante ao próprio discurso propagandístico do Estado Novo sobre a I República e sobre si próprio — carece, a meu ver, de qualquer sustentação histórica. E, talvez por isso mesmo, convém salientá-lo, não é subscrita, ao que me parece, por uma significativa parte de historiadores e investigadores que, com diferentes perspectivas, trabalham sobre este período.

O que julgo intelectualmente inaceitável é que alguns dos candidatos do costume a sacerdotes do “pensamento único” venham ameaçar com a excomunhão do seu mundo civilizado quem não aceitar o que eles parece quererem transformar numa espécie de cartilha ”normalizadora” do salazarismo e da sua representação histórica. Peço licença para dizer que, como historiador e como cidadão, não me intimidam. E por isso vamos ao que interessa.

É bem certo que a I República, e já várias vezes o escrevi, não foi, obviamente, uma democracia nem política, nem socialmente, sobretudo no sentido moderno do termo. Com o seu liberalismo oligárquico, com as suas perseguições políticas (sobretudo na sua primeira fase contra as conspirações restauracionistas) e principalmente sociais (contra o movimento operário e sindical), foi um regime de liberdade frequentemente condicionada, à semelhança da maioria dos regimes liberais da Europa do primeiro quartel do século XX. Mas com o ser isso tudo, foi um sistema imensamente mais liberal e aberto do que o Estado Novo da censura prévia, da proibição e perseguição dos partidos, dos sindicatos livres, do direito à greve e da oposição em geral, da omnipresença da polícia política e da violência arbitrária, da opressão quotidiana dos aparelhos de repressão preventiva e de enquadramento totalizante. E tenho para mim que isso não é banalizável ou “normalizável”. Nem histórica, nem civicamente. É por isso que os valores matriciais da I República puderam ser os da resistência à ditadura salazarista e enformaram, como referência, os constituintes democráticos de 1976.

Infelizmente, RR não compareceu a este debate. Refugiou-se sob o manto de uma pretensa intangibilidade moral, ou seja, de uma vitimização construída a partir, na realidade, da deturpação dramatizante das criticas do seu interlocutor. FM fez bem pior. Sem aparentar perceber nada de nada, veio à liça reclamar contra o facto facto de ML romper o consenso que ela acha que existia em torno do “terror republicano”, apodá-lo de “marxista leninista” e de “historiador medíocre” — quem falou de insultar? — sem discutir um único dos seus pontos de vista e confessando desconhecer e não querer conhecer a obra de ML! E embalou: a “deturpação de um texto”, diz FM, está na natureza dos comunistas e apela sem rebuço à censura do “seu” jornal contra tal gente. Isto tudo, claro está, porque, como se terá percebido, FM “gosta de controvérsia”...

Para mim, ao contrário, acho absolutamente necessário que RR e FM continuem a ter pleno direito à palavra. Pelo menos, isso mantém-nos atentos e despertos relativamente aos “demónios capazes de despertar o pior da cultura portuguesa” (António Barreto dixit)

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